A estreia da NRF Europa em Paris não foi apenas um gesto simbólico. Realizada de 16 a 18 de setembro no Paris Expo Porte de Versailles, a edição uniu a tradição da Paris Retail Week à potência de conteúdo da NRF Retail’s Big Show, que ocorre anualmente nos Estados Unidos desde 1911. A edição europeia reuniu cerca de 15 mil profissionais e 480 expositores em uma arena que combinou educação executiva, store tours em lojas-laboratório e zonas de inovação como o Innovation Lab e o Startup Hub.
A escolha da capital francesa faz sentido: Paris é o berço do luxo, da moda e da cultura de consumo europeia. Ao mesmo tempo, a Europa tem regulações próprias em ESG, pagamentos e tecnologia, o que cria um palco fértil para discutir o futuro do varejo em escala global. O guarda-chuva conceitual Retail Together – que, em tradução livre, soa como “Vamos varejar” – resumiu bem a proposta: unir herança, tecnologia e escala em torno de uma agenda prática, com pagamentos invisíveis, IA pragmática, omnichannel real e sustentabilidade regulada.
A loja física no centro da experiência
Se, nos Estados Unidos, a NRF historicamente debateu e-commerce e tecnologia, em Paris, a loja física voltou ao protagonismo. Os store tours mostraram como o varejo europeu vem transformando seus pontos de venda em hubs logísticos e emocionais: compre online e retire na loja (na sigla, em inglês, bopis, que significa: buy online, pick up in store), devolução assistida, last mile, coleta de dados para personalização e serviços de alto valor agregado.
Exemplos reforçaram a tese. A Kingfisher PLC revelou que 90% dos pedidos online são preparados em lojas físicas, as quais se tornaram pontos de devolução e retirada de produtos de marketplace. Já o Carrefour mostrou como a digitalização reduz rupturas em autoatendimento, recuperando até 1% do faturamento em semanas.
Pagamentos invisíveis
O desaparecimento do balcão de caixa foi um dos temas mais comentados. Dados da Adyen mostraram que, em 2025, o uso de terminais móveis superou o de fixos, enquanto o tap to pay no iPhone cresceu mais de 700% só no primeiro semestre.
Casos práticos reforçaram a tendência: na loja On, marca suíça de calçados, nunca existiram caixas tradicionais — cada vendedor já nasce consultor com dispositivo móvel em mãos.
Essa mudança transforma o pagamento em algo invisível e integrado à jornada, aumentando conversão e lealdade ao cliente.
IA pragmática
Se antes a inteligência artificial era pauta de inovação, agora, ela se mostra como motor de eficiência. No Startup Hub, soluções aplicadas à cadeia de suprimentos abordaram previsão de demanda, markdown inteligente e risk intelligence.
A Best Buy, dos EUA, trouxe um exemplo emblemático: opera 1.000 lojas e 80 mil colaboradores, apoiados por um gêmeo digital da rede logística. Essa cópia virtual permite simular cenários e reduzir estoques, com uma IA descrita como “adolescente” — capaz de decidir parte das operações, mas sempre com supervisão humana.
Marketplaces como ecossistemas
As discussões mostraram que marketplaces não são apenas catálogos digitais. A Galeries Lafayette revelou que 60% do sortimento online já vem de parceiros externos, representando um terço das vendas digitais. A meta é que 20% a 30% da receita online venha de mercados internacionais em até cinco anos.
A Coca-Cola HBC (Hellenic Bottling Company) é a maior vertical de engarrafamento da companhia no mundo, responsável por abastecer 28 países da Europa e além. A empresa opera uma plataforma digital B2B que integra portfólio de marcas, logística e dados, permitindo que bares, restaurantes e pequenos varejos façam pedidos, recebam recomendações personalizadas e otimizem sortimento. Usando machine learning, a Coca-Cola HBC segmenta clientes até o nível “nano” e promove um ecossistema colaborativo, onde até produtos concorrentes — como Pepsi — são disponibilizados para os clientes, reforçando a lógica de criar valor para toda a cadeia.
Esses exemplos reforçam a ideia de marketplaces como ecossistemas, que combinam vendas, logística, dados, mídia e sustentabilidade, além de colaborações estratégicas mesmo entre concorrentes, pois todos ganham.
Comunidade e cultura como diferenciais
Outro destaque veio da parceria entre Snipese e Paris Saint-Germain (PSG). O acordo de três anos, que tornou a marca de streetwear o “parceiro oficial de cultura e comunidade” do clube, vai além da exposição da logomarca na camisa. O foco é criar impacto social por meio de estúdios de música, dança e projetos nos bairros de Paris.
Segundo o CEO da Snipese, Dennis Schröder, só faz sentido investir em parcerias que nascem da comunidade para depois ganharem escala global. Essa lógica “hiperlocal para global” foi apontada como modelo de autenticidade no varejo contemporâneo.
Reinvenção dos formatos tradicionais
O varejo europeu também mostrou como formatos históricos se reposicionam. Guillaume Motte, CEO da Sephora, abriu o evento com a palestra We Belong to Something Beautiful que, em tradução livre, significa “Nós fazemos parte de algo belo”. Motte defendeu lojas vivas, com pessoas e curadoria como alicerces do crescimento.
No segmento de eletrônicos, Kai Deissner, CEO da MediaMarktSaturn, foi enfático: “o modelo clássico de varejo de eletrônicos está quebrado”. Sua empresa reposicionou-se como plataforma de serviços, com negócios de Services & Solutions (1 bilhão de euros), marketplace de 2,8 milhões de SKUs, retail media e até Space as a Service, transformando áreas das lojas em espaços de entretenimento.
O que a NRF Europa ensinou
Mais do que slogans, a NRF Europa 2025 foi sobre engenharia da experiência. Paris mostrou um setor em transformação acelerada, onde loja física, IA, pagamentos invisíveis e sustentabilidade regulada não são tendências, mas realidades operacionais.
10 aprendizados centrais
- A loja física voltou ao centro como hub logístico, emocional e de dados;
- Pagamentos móveis e invisíveis superaram os modelos fixos;
- IA pragmática atua na previsão, precificação e resiliência de supply chain;
- Marketplaces amadureceram como ecossistemas de vendas, mídia e logística;
- Parcerias culturais autênticas ampliam a relevância de marcas;
- Experiência virou métrica: tempo de permanência, NPS e recorrência importam mais que reais por m²;
- Circularidade e ecodesign são KPIs anuais, não campanhas pontuais;
- Retail media se consolidou como fonte de receita;
- Colaboração entre concorrentes (Coca-Cola e Pepsi) redefine ecossistemas B2B; e
- Lojas de departamento e eletrônicos reposicionam-se como destinos de lifestyle e serviços.
Palavra final
A escolha de Paris para sediar a primeira edição europeia da NRF reforçou o papel da cidade como coração cultural e regulatório do varejo mundial. Entre store tours, pavilhões de inovação e palestras densas, o evento deixou uma mensagem clara: o futuro do varejo já chegou — e ele é integrado, invisível, sustentável e, acima de tudo, centrado nas pessoas.
Vanessa Sandrini é estrategista de varejo e fundadora da VaS Continuum. A executiva viajou para a NRF Europa, de onde compartilhou seus insights e conhecimento dos três dias de evento.
Imagens: Vanessa Sandrini/arquivo pessoal